terça-feira, 19 de abril de 2011

25.



Da série: 'não sei mais que um miúdo de 10 anos'


O que é um pecado?


óleo s/ tela, 73 x 92 cm


MJoão, 2010


'Le moyen le plus simple d'identifier autrui à soi-même, c'est encore de le manger'.


Claude Lévi-Strauss














quinta-feira, 18 de março de 2010

24

pintura de boudoir V
óleo s/ cartão, 18 x 15 cm
MJoão, 2010
'O elitismo de que os simbolistas foram acusados, foi posto em causa pelos próprios processos poéticos, centrados numa estética da sugestão, que exige um trabalho do receptor (...)
É na indeterminação do sentido que se vislumbra qualquer vestígio de permanência ou de eternidade, se é que qualquer espécie de permanência existe'.

In 'Questões de Poética Simbolista - Do romantismo à modernidade', Paula Mendes Coelho, Dez 2006


quinta-feira, 15 de outubro de 2009

23.

Da série: Iconografia
'anunciação'
óleo s/ tela, 117 x 70cm
M João, 2006
'Este é o meu corpo' (...) Somos obcecados pela vontade de mostrar um isto, o isto onde se apresenta o Ausente por excelência: nunca o teremos deixado de chamar, convocar, consagrar, interpelar, captar, querer, e querer absolutamente.
'Este é o meu corpo'...desafia, apazigua todas as nossas dúvidas sobre as aparências, e dá ao real o verdadeiro retoque final da sua Ideia pura: a sua realidade, a sua existência. Desta frase, nunca acabaríamos de modular as variantes (...o nu na pintura, Madame Bovary sou eu, a cabeça de Luis XVI, as estampas anatómicas de Vesálio ou Leonardo, a voz - de castrado, de soprano, etc. -, o histérico: na verdade é toda a textura de que somos tecidos...), e que pode gerar a totalidade do corpus de uma Encilopédia Geral das Ciências, das Artes e dos Pensamentos do Ocidente. (...)
O intervalo entre os corpos é o seu ter-lugar em imagens. As imagens não são aparências, são o modo como os corpos se oferecem entre si, são a vinda ao mundo, ao bordo, à glória do limite e do fulgor. Um corpo é uma imagem oferecida a outros corpos, todo um corpus de imagens lançadas de corpo em corpo, cores, sombras locais, fragmentos, grãos, aréolas, lúnulas, unhas, pêlos, tendões, crânios, costelas, pélvis, ventres, meatos, espuma, lágrimas, dentes, babas, fendas, blocos, línguas, suores, líquidos, veias, penas e alegrias, e eu, e tu.'
In 'Corpus' de Jean-Luc Nancy, trad. Tomás Maia, Ed. Vega, 2000

quinta-feira, 11 de junho de 2009

22.


da série:
Pinturas de Boudoir III
óleo s/ cartão, 18 x 15 cm
'Trabalhava depressa e com paixão. Foi um retrato com aquilo de que os meus olhos velados pelo coração, se aperceberam. Parece-me sobretudo que ele traduzia melhor o interior: o fogo robusto de uma força contida. Ela tinha na orelha uma flor que ouvia os seus perfumes. E a sua fronte lembrava, na sua majestade, pelas sua linhas sobreelevadas, uma frase de Poe: "não há beleza perfeita sem uma certa singularidade nas proporções".
In 'NOA NOA', Paul Gauguin, Ed. Ulmeiro, col. Mínima.

terça-feira, 9 de junho de 2009

21.




Outras coisas que eu também faço

Moldura c/ espelho: (restauro personalizado) da série ACHADO NA RUA
Folha de prata, tinta acrílica

domingo, 24 de maio de 2009

20.

da série:
Pinturas de Boudoir
II
óleo s/ cartão, 18 x 15 cm
moldura: "achada na rua"
'A superfície polida reflectia as sombras humanas e os móveis pançudos, enquanto espelhos altos suscitavam a ilusão de espaços multiplicados até ao infinito. Para libertar a cúpula furada, donde provinha a luz, amores cor-de-rosa seguravam uma sanefa pintada. E a toda a volta corria uma galeria, donde (recitou o guarda do castelo) outrora as ondas de música corriam sobre os convivas que estavam em baixo.
Falou das cinquenta e cinco salas do castelo e, segundo a rotina estabelecida, caiu nas alusões matreiras sem que as suas graças conseguissem desenrugar por pouco que fosse, o seu rosto com a boca de esguelha. Essas salas não se abriam para toda a gente. Os grandes senhores da época tinham muito gosto pelas malícias, o mistério, a dissimulação, os esconderijos, os desvãos ocultos e propícios para as delícias secretas (e as polícias secretas) e para onde se entrava graças a dispositivos mecânicos. E ele parou na frente de um espelho fixado na parede que, sob a pressão de uma mola, deslizou para o lado e, perante a surpresa geral, pôs à mostra uma escada estreita em caracol com os degraus finamente trabalhados. Junto da escada, à esquerda, erguia-se, sobre um pedestal, um dorso de homem reduzido a 3/4, sem braços, coroado de bagas, com um saiote de folhas artificiais e o alto do busto um pouco deitado para trás. Houve "ahs" e "ohs", "etcoetera", disse o guia e expôs no lugar o espelho mistificador. "Ou então assim" - e, um pouco mais longe, levantou a aldraba duma almofada de tapeçaria de seda que não oferecia nada de insólito e que se abriu como uma porta escondida sobre um corredor que conduzia para o desconhecido e cheirava a bafio. "Eles gostavam disto - afirmou o maneta - outros tempo, outros costumes", prosseguiu ele, com uma futilidade sentenciosa, e a visita continuou. '
In Thomas Mann, O Cisne Negro

sexta-feira, 15 de maio de 2009

19.

da série:

Pinturas de Boudoir

I

óleo s/ cartão, 18 x 15 cm,MJoão

moldura: "achada na rua"

"Do que sucedeu ao engenhoso fidalgo na venda que ele imaginava castelo...

...Embora improvisada com os enxalmos e mantas dos seus machos levava grande vantagem à de dom Quixote, que só continha quatro mal acepilhadas tábuas sobre dois bancos não muito iguais, com um colchão que de tão fino parecia colcha, cheio de godilhões que, a não mostrarem que eram de lã por alguns rasgões, ao tacto da dureza pareciam calhaus, e dois lençóis feitos de coiro de adarga, e um cobertor cujos fios, se se quisessem contar, não se perderia um só da conta. Nesta maldita cama se deitou dom Quixote;..."

In 'Dom Quixote' de Miguel de Cervantes, Clássicos Civilização,Cap. XVI


terça-feira, 3 de março de 2009

18.

"Alminha"
óleo s/tela, 80 x 30 cm.
Mª João, 2008
´ROADKILL´
Quanto tempo resta
À pomba pureza
Branca e decapitada
De amarelo vermelho manchada
Colhida pelo Minotauro
Mecanizado com faróis de halogéneo
Numa auto-estrada diurna
Da Alemanha de Leste?
O tempo que leva a percorrer
A distância entre a morte e a vida
Quanto tempo resta
À serpente perdição
Verde esmagada
De estrada manchada
Pisada pelo Gigante rodado
Com botas cardadas
Na interminável Via Dolorosa
Do deserto do Arizona?
O tempo que leva a percorrer
A distância entre a morte e a vida
Puro como a Pomba
Prudente como a Serpente.
In "Como Escavar um Abismo", Poesia,
de Fernando Ribeiro, Quasi Edições, 2005

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

17.

da série:"não sei mais do que um miúdo de 10 anos"

'o que é um pecado?'
(em execução)
«O que fazemos nós dentro destes corpos», disse o senhor que se preparava para se estender na cama ao lado da minha.
A sua voz não tinha uma entoação interrogativa, talvez não fosse uma pergunta, era só, a seu modo, uma constatação, em todo o caso seria uma pergunta a que eu não poderia responder.(…)
«Talvez viajemos dentro deles», disse eu.
Devia ter passado um certo tempo desde a sua primeira frase, tinha seguido outra linha de pensamento: alguns segundos de sono, talvez. Estava muito cansado.
«Como disse?», perguntou.
«Estava a referir-me aos corpos», disse eu, «talvez sejam como malas, em que nos transportamos a nós próprios».
Olhei para ele e, na luz esverdeada, vi o perfil de um rosto afilado, as mãos sobre o peito.
«Conhece Mantegna?»
«Não», disse, «é um indiano?»
«É um italiano», disse eu.
«Só conheço ingleses», acrescentou, «os únicos europeus que conheço são ingleses». (…)
«Mantegna é um pintor, mas eu não o conheci, morreu há alguns séculos».
O homem respirou profundamente. Estava vestido de branco, mas percebi que não era muçulmano. (…)
«O senhor o que é?»perguntei, «queira desculpar a minha indiscrição»-
«Sou jaina», disse. «É uma religião muito bela e muito estúpida».
Disse isso sem qualquer desprezo, sempre no tom neutro de um depoimento, como se fizesse uma afirmação diante do guichet de uma repartição pública.(…)
Quando voltou a falar tive uma espécie de sobressalto. «Eu vou para Varanasi», disse, «e o senhor?»
«Para Madrasta», disse eu, queria ver o lugar onde dizem que o apóstolo S.Tomás foi martirizado, os portugueses construíram lá uma igreja no séc. XVI, não sei o que resta dela. E depois tenho de ir a Goa, vou consultar uma antiga biblioteca, foi para isso que vim à Índia.
«É uma peregrinação?», perguntou ele.
Respondi que não. Ou melhor, sim, mas não no sentido religioso do termo. Quando muito era um itinerário privado, sei lá, procurava somente rastos.
«O senhor é católico, suponho», disse o meu companheiro.
«Todos os europeus são católicos, de certo modo», disse eu. «Ou pelo menos cristãos, é praticamente a mesma coisa».(…)
«Em tempos li os Evangelhos», disse ele, «um livro muito estranho».
«Só estranho?»
Teve uma hesitação. «Tambem cheio de soberba», disse, «sem ofensa».
O meu companheiro apagou o cigarro e tossiu. «Vou para morrer», disse, «restam-me poucos dias de vida». Ajeitou a almofada debaixo da cabeça.«Mas talvez seja melhor dormir». Continuou, «não temos muitas horas de sono, o meu comboio parte às cinco».
«O meu parte pouco depois», disse eu.
«Não tenha receio», disse ele, «o criado virá acordá-lo a tempo. Suponho que não teremos ocasião de nos voltarmos a encontrar sob as aparências em que nos conhecemos, estas nossas actuais malas. Desejo-lhe boa viagem».
«Boa viagem para si também», respondi.

“Nocturno Indiano” de Antonio Tabucchi, Quetzal Editores, Lisboa/ 1995.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

16.

"david"
óleo s/ tela, 100x 100 cm
Mª João, 2006
'...ao estudar as mais variadas teorias produzidas para explicar a experiência estética, notamos logo, independentemente dos diversos pontos de vista, que algumas qualidades e elementos específicos determinam globalmente o caracter dessa experiência. Ela implica sempre uma certa distanciação do espectador, uma certa separação psicológica entre o que está representado na imagem e o que está a ser observado. Todas as teorias concordam em que, quando o observador é levado a uma acção ou a um determinado comportamento que pode avaliar-se em termos educativos, políticos, religiosos ou outros, acaba a experiência estética, naquilo que ela tem de específico.
A experiência estética, já foi dito muitas vezes, é pura contemplação, desinteressada.
Por isso, para uma abordagem dentro do domínio estético, é essencial que a obra de arte seja considerada isoladamente de tudo o resto; preservar a sua autonomia, passa por destacá-la da realidade fora dela. Questionar até que ponto os traços gerais de uma obra têm de comum com a realidade envolvente, é enfraquecer a sua autonomia.
Ora, é importante lembrar que em todos os grandes debates sobre o estatuto da imagem, a atitude estética nunca foi sequer aflorada. Tanto para os destruidores de imagens, os iconoclastas, como para os seus defensores, desde a Antiguidade até à Reforma, a atitude estética estava longe de ser considerada. Por muito radicalmente opostas que fossem as suas posições, partilhavam a convicção que uma imagem não existe por si só, que não é autónoma, e que deve transportar o espectador para lá da mera contemplação. De facto, um estudo destes debates mostra-nos até que ponto é recente a atitude estética e como era insignificante.
In 'Icon, Studies in the history of an Ideia', Moshe Barasch

segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

15.

"oferenda"
óleo s/tela, 100 x 100 cm
Mª João, 2006
P.V.P.:
"...O ocre ferruginoso é relativamente comum, particularmente nas regiões de solo calcário onde se encontram as grutas. A sua tonalidade varia do amarelo ao vermelho e ao castanho, consoante o mineral e o seu uso, cru ou calcinado. É um dos pigmentos de base que serviram aos pintores das grutas.
Com frequência, encontramos fragmentos de ocre talhados em ponta como um lápis, ou pedaços raspados e facetados, ou ainda calhaus que serviram para triturar o corante.(...)
Num certo número de sepulturas, encontra-se o esqueleto mergulhado numa camada de ocre e fortemente tingido de vermelho.(...)
Encontramos enfim o ocre espalhado pelo chão das habitações. Várias camadas de Arcy-sur-Cure são assim separadas. A que corresponde ao Aurignacense médio apresenta um aspecto verdadeiramente extraordinário: sobre o empedrado bem nítido do espaço habitado, há uma camada de dez a vinte centímetros de espessura de ocre vermelho-violeta quase puro, misturado com restos de vida quotidiana. Este ocre foi trazido, às centenas de quilos, de um local situado a cerca de um quilómetro, do outro lado do rio..."
In André Leroi-Gourham, 'Os Caçadores da Pré-História', 1983

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

14.

'Baptista'
óleo s/ tela, 73 x 116 cm
Mª João, 2006



"...É por isso que tais signos picturais impedem, de repente, qualquer relação unívoca de atribuição, tanto na sua acepção lógica como iconológica. Tais signos têm o valor de deslocação, de passagem, de associação e não de definição, identificação ou afirmação.
A existir um pensamento próprio das imagens, será o pensamento associativo, translata, o pensamento que se estrutura no seio do seu próprio deslocamento.
A imagem, inapta - ou antes, insensível - ao estrito pensamento lógico, retira desta mesma insensibilidade toda a força significante."
In George Didi-Huberman, 'Fra Angelico, Dissemblance et Figuration', Flammarion, Paris, 1990.(trad. minha)




terça-feira, 23 de setembro de 2008

13.

"Quaresma - cordeiro místico"
óleo s/ tela
92 x 73cm
M João, 2006 (vendido)


'Resumindo: parece-nos que achamos um facto importante, que fatalmente se deu, colocado na aurora da espécie. Veremos que a sua tradição e mitos estão universalmente espalhados e, por fim, provaremos que a sua dramatização dá o sacrifício (...) Ora, todos os mitos do pecado original atribuem a queda ao uso de um alimento novo...Sabemos , porém, que o antropóide era frugívoro, logo essa mudança de regimen foi da fruta para a carne.'

In Aarão de Lacerda, O Fenómeno Religioso e a Simbólica', Lisboa, Guimarães Editores.












segunda-feira, 21 de julho de 2008

12.

da série: Iconografia
"Paixão"
óleo s/ tela
Mª João, 2005
"Muitas vezes, no decurso da existência, a realidade me decepcionara porque, ao vislumbrá-la, a minha imaginação, meu único orgão para sentir a beleza, não se lhe podia aplicar, devido à lei inevitável em virtude da qual só é possível imaginar-se o ausente. E eis que repentinamente se neutralizava, se sustinha o efeito dessa dura lei, pelo expediente maravilhoso da natureza, fazendo cintilar a mesma sensação tanto no passado, o que permitia à imaginação gozá-la, como no presente, onde o abalo efectivo dos sentidos, pelo som, pelo contacto, acrescentara aos sonhos da fantasia aquilo de que são habitualmente desprovidos, a ideia da existência, e, graças a esse subterfúgio, me fora dado obter, isolar, imobilizar-a duração de um relâmpago-o que nunca dantes apreendera: um pouco de tempo em estado puro".
Marcel Proust
in Em Busca do Tempo Perdido, vol. VII, o tempo redescoberto.
Edição Livros do Brasil, Lisboa,trad. de Mário Quintana.

quarta-feira, 16 de julho de 2008

11.

da série: Iconografia
"Fuga para o Egipto"
óleo s/ tela, 73 x 92 cm
"...Talvez esse escritor não possa pensar em alcançar ou comover os cultores de James Michener e Irving Wallace, para não falar dos analfabetos lobotomizados pelos mass media, mas poderá pensar em alcançar e divertir, pelo menos algumas vezes, um público mais vasto do que o círculo daqueles a que Thomas Mann chamava os primeiros cristãos, os devotos da Arte...(...)
Ele pretende simplesmente derrubar a barreira erguida entre a arte e o prazer. Pressente que chegar a um público vasto e povoar os seus sonhos talvez signifique hoje ser de vanguarda e deixa-nos ainda a liberdade de afirmar que povoar os sonhos dos leitores não quer dizer necessariamente consolá-los. Pode querer dizer obcecá-los."
Umberto Eco in "Porquê «O Nome da Rosa»?", Edit. Difel, 1984.

terça-feira, 8 de julho de 2008

10.

da série: Iconografia
"O Manto Azul"
óleo s/ tela, 50 x 50 cm
MJoão, 2006
"O dominicano Giovanni Balbi de Gênes, no sec. XIII, deu-nos uma definição espantosa de figura num dicionário célebre, o Catholicon, largamente utilizado até ao alvorecer do séc. XVI.
No artigo figurare deste dicionário escrito em latim, lê-se: Figurare, a um nível superficial, significa representar uma coisa sob o seu aspecto natural (forma naturae). Mas a um nível bem mais profundo e essencial, figurare torna-se um verbo muito paradoxal, equivalente aos dois verbos praefigurare e mesmo defigurare. Porquê? Porque o acto de figurar consiste estritamente em «transportar ou deslocar o sentido (o sentido da coisa que queremos significar) para uma outra figura» (in aliam figuram mutare). É neste transporte e nesta alteridade que se constitui todo o paradoxo da figura como teia de relações. Figurar uma coisa não é portanto restituir-lhe o seu aspecto natural ou "figurativo".
É exactamente do contrário que se trata, de levar a cabo todo um deslocamento do seu aspecto, para tentar apreender ou aproximar por um desvio, da sua verdade essencial".
In "L´image ouverte: motifs de l'incarnation dans les arts visuels" de George Didi-Huberman, Gallimard, 2007 (trad. minha).

sábado, 28 de junho de 2008

9.

da série: Iconografia
"Encarnação"
óleo s/ tela, 50 x50 cm
MJoão, 2006
"Assim, foi mais a exigência da natureza das minhas aspirações do que qualquer falta degradante que me tornou o que fui e separou em mim, com uma fronteira mais nítida do que na maioria das pessoas, os domínios do bem e do mal em que se divide e de que se compõe a dupla natureza do homem.
Fui, deste modo, levado a reflectir profundamente, frequentemente, nesta terrível lei da vida que está na origem da religião e que é uma das mais abundantes fontes de angústia. Embora fosse tão profundamente dúplice, não era, de nenhum modo, um hipócrita; ambos os meus aspectos eram profundamente sérios; era igualmente eu, quer quando me punha de parte, reservado e cheio de vergonha, quer quando, em plena luz, trabalhava pelo avanço da ciência e procurava aliviar a tristeza e a dor. Ora aconteceu que os meus estudos científicos, reagiram e lançaram uma forte luz sobre esta consciência duma luta perpétua entre os elementos que me constituíam. A cada dia que passava e pelos dois lados do meu espírito, o moral e o intelectual, ia cada vez mais perto daquela verdade, cuja descoberta, embora parcial, me condenou a tão terrível desastre: a verdade de que o homem não é, na realidade, uno, mas duplo. E digo duplo porque o estado dos meus conhecimentos não me permite ir além deste ponto. Outros irão mais longe do que eu, outros descobrirão mais na mesma direcção; e atrevo-me a prever que um dia se descobrirá que o homem é simplesmente uma comunidade de variados, incompatíveis e independentes cidadãos."
In 'O Estranho Caso do Dr Jekyll e Mr.Hyde' de Robert Louis Stevenson;Edit. Relógiod'Água,1987; Trad. de Agostinho da Silva.

quarta-feira, 25 de junho de 2008

8.

da série: Iconografia

"Antoninho"
óleo s/tela, 80 x 30 cm

MJoão, 2007
"Nada nos envelhece mais do que uma colecção de objectos de arte.
Tirou, um por um, os personagens da Commedia, das prateleiras, e colocou-os no charco de luz onde pareciam patinar no tampo de vidro da mesa, girando nos seus pedestais de espuma dourada, como se ficassem para ali a rir, a rodopiar e a improvisar eternamente.
Scaramouche dedilharia a guitarra.
Brihella aliviaria os passeantes das suas bolsas.
O Capitão, como todos os militares, brandiria infantilmente a sua espada.
O Doutor mataria os pacientes a fim de os livrar das doenças.
Os anéis de macarrão ficariam para sempre suspensos por cima das narinas de Pulichinelo.
Pantalão babar-se-ia de gozo diante dos seus sacos a abarrotar de dinheiro.
A Innamorata, como todos os travestis deste mundo, seria seguida por uma multidão a caminho do teatro.
Colombina continuaria pela eternidade fora apaixonada por Arlequim - «era pura loucura confiar nele».
E Arlequim...O Arlequim...o arqui-improvisador, brincalhão, malandro, o rei dos vira-casacas...pavonear-se-ia para todo o sempre na sua pulmagem multicor, sorriria maliciosamente por detrás da máscara, entraria sorrateiramente nas alcovas, venderia fraldas para os filhos do Grande Eunuco, dançaria à beira do abismo...O Perfeito D. Camaleão!"
In 'UTZ', de Bruce Chatwin; Quetzal Editores, Lisboa 1991; trad. de José Luis Luna

terça-feira, 24 de junho de 2008

7.

da série: Iconografia
'Calvário'
óleo s/ tela, 80 x 30 cm
MJoão, 2003
'IMAGEM (ESTIL.)
A imagem é uma das figuras de pensamento, que se reduz a uma confrontação de um objecto com outro, por forma concisa, e sem a veleidade de pretender caracterizar todas as semelhanças que existam entre os dois objectos. Em última análise, a imagem nada mais é do que uma metáfora desenvolvida de modo a fugir à simples comparação, para mais incisivamente dar uma transfiguração mais impressiva. A frase «os olhos são o espelho da alma», constitui uma imagem impressiva, mas o mesmo não sucede já com estoutra, em que se não eliminou o termo de comparação: «os olhos são como que o espelho da alma». (...) A imagem é um recurso de que se lança mão para se deixar ao ouvinte ou ao leitor, o prazer de descobrir quais os pontos de contacto que pretendemos frisar, nas relações entre dois objectos diferentes. (...)'
In Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira

quarta-feira, 18 de junho de 2008

6.

da série: iconografia
"António"
óleo s/ tela, 73 X 60
MJoão, 2007
"É na incapacidade da ironia que reside o traço mais fundo do provincianismo mental. Por ironia entende-se, não o dizer piadas, como se crê nos cafés e nas redacções, mas o dizer uma coisa para dizer o contrário. A essência da ironia consiste em não se poder descobrir o segundo sentido do texto por nenhuma palavra dele, deduzindo-se porém esse segundo sentido do facto de ser impossível dever o texto dizer aquilo que diz. Assim, o maior de todos os ironistas, Swift, redigiu, durante uma das fomes na Irlanda, e como sátira brutal à Inglaterra, um breve escrito propondo uma solução para essa fome. Propõe que os irlandeses comam os próprios filhos. Examina com grande seriedade o problema, e expõe com clareza e ciência a utilidade das crianças de menos de sete anos como bom alimento. Nenhuma palavra nessas páginas assombrosas quebra a absoluta gravidade da exposição; ninguém poderia concluir, do texto, que a proposta não fosse feita com absoluta seriedade, se não fosse a circunstância, exterior ao texto, de que uma proposta dessas não poderia ser feita a sério.
A ironia é isto. (...)"
Fernando Pessoa
'O Provincianismo Português' (1928) in «Notícias Ilustrado», nº 9, Lisboa, 12-VIII-1928

sexta-feira, 30 de maio de 2008

5

da série: Iconografia
"Sebastião"
óleo s/ tela, 80 x 30 cm
MJoão, 2003

"Pois deves saber que nós poetas não podemos seguir o caminho da beleza sem que Eros se nos depare e se torne nosso guia; podemos bem ser heróis à nossa maneira e guerreiros honestos, mas somos sempre como as mulheres, pois a paixão é a nossa sublimação e o nosso desejo será sempre o amor - é esta a nossa vontade e a nossa vergonha. Vês agora por que é que nós poetas não podemos ser sábios nem dignos? Que seguimos necessariamente o caminho falso, que necessariamente permanecemos libertinos e aventureiros do sentimento? A mestria do nosso estilo é mentira e loucura, a nossa fama e distinção uma farsa, a confiança do público em nós altamente ridícula e a educação do povo e da juventude através da arte um empreendimento arriscado, a proibir. De outro modo, como poderia ser educador aquele que tem inata uma incorrigível e natural atracção para o abismo?"

In «A Morte em Veneza», Thomas Mann, edit. Relógio d'Água 1987, trad. Cláudia Fisher.


quinta-feira, 29 de maio de 2008

4.


da série: Iconografia
"O Beijo de Judas"
óleo s/ tela, 30 x 50 cm
Mª João, 2004
vendido
"Ágaton levantou-se, pois, para se instalar ao pé de Sócrates. Mas eis que de repente uma horda de foliões chega à entrada da porta de casa. Ao vê-la casualmente aberta por alguém que saía, avançaram logo direitos à sala e instalaram-se. Foi uma perturbação geral e, sem sombra de ordem, era-se obrigado a beber vinho em grande quantidade. Erixímaco, Fedro e mais alguns outros, segundo Aristodemo, aproveitaram a altura para se irem embora. Quanto a ele, deixou-se invadir pelo sono e dormiu a bom dormir - pois as noites eram então longas - para só acordar de madrugada, quando já os galos cantavam.
Ao abrir os olhos, reparou que uns estavam a dormir e que outros se tinham já ido embora. Apenas Ágaton, Aristófanes e Sócrates se mantinham acordados, a beber por uma grande taça que iam passando pela direita. Sócrates estava a conversar com eles. Aristodemo pouco se lembrava do que diziam, pois não tinha seguido a conversa de início e, além disso, estava ainda ensonado. Mas, de uma maneira geral, Sócrates insistia em fazer-lhes ver que o mesmo homem que sabe compor tragédias sabe também compor comédias, e que aquele que tem a arte do poeta trágico tem também a do poeta cómico."
In «O Banquete», Platão, Edit. 70, trad. Mª Teresa S. de Azevedo
"Tal como o homem verdadeiro e bom do Hípias Menor é o que é capaz de fazer mal e mentir, assim também o poeta que sabe representar a face trágica da vida deve saber representar a sua face cómica".
In Notas da tradutora à obra citada.






quarta-feira, 28 de maio de 2008

3.

da série: Iconografia
"Criação de Eva"
óleo s/ tela, 27 x 55 cm
Mª João, 2004

Desclassificação da matéria; ela não é ideológica

"Entre velar e revelar se joga, ao longo desta história, o fim último da pintura. Paul Klee dirá que a arte torna visível. Talvez isso tenha funcionado durante algum tempo e sobretudo como um programa para o modernismo. Não ficaria ele espantado com o papel da visibilidade nos dias de hoje? O excesso de imagem a que estamos submetidos submerge e impede ou dificulta o conhecimento em vez de o apoiar, e a ideia de Klee parece pedir uma espécie de inversão em que o papel libertador da arte passe por uma espécie de contenção purificadora que recupere o velar, ocultar, como elemento a considerar no que se exibe ou revela. Assim, o que uma pintura mostra num novo regime de visibilidade - o nosso, de hoje - é sempre um detalhe sem a nostalgia do absoluto.Afinal não nos restam senão fragmentos, hipóteses entre infinitas combinações possíveis."

In Prefácio de Manuel San Payo a «A Obra-Prima Desconhecida», Honoré de Balzac, trad. Silvina Lopes, Edit. Vendaval, 2002

terça-feira, 27 de maio de 2008

2.


Mª João Rato
da série: Pinturas de boudoir

"Paisagem com ombro"
óleo s/ tela, 50 x 70 cm , 2004





"CYRIL. (entra, transpondo a janela aberta que dá para o terraço). Meu caro Vivian, não te feches todo o dia na biblioteca. Está uma tarde perfeitamente encantadora. O ar embriaga de tanta suavidade. Há neblina nos bosques e um esplendor purpurino nas árvores. Vamos sair daqui, estender-nos na relva, fumar cigarros, desfrutar a Natureza.
VIVIAN. Desfrutar a Natureza! É bom de dizer. Perdi inteiramente essa faculdade. As pessoas garantem-nos que a Arte nos faz amar a Natureza muito mais do que a amaríamos sem ela, e que os segredos da segunda nos são revelados pela primeira. Também dizem que após o estudo minucioso de Corot e Constable vemos coisas naturais que antes tinham escapado à nossa observação. A minha própria experiência diz-me o contrário: quanto mais estudo a Arte, menos me interessa a Natureza(...)
CYRIL. Bem, não é preciso olhar para a paisagem. Basta estender-nos na relva, fumar e conversar.
VIVIAN. Mas a Natureza é tão desconfortável. A relva é dura, e áspera, e húmida, e cheia de medonhos insectos pretos. (...) Se a Natureza fosse confortável, a arquitectura nunca teria sido inventada."


In«O Declínio da Mentira», Oscar Wilde, Edit. Vega 2005, trad. Ernesto Sampaio

1.

da série: Pinturas de boudoir
"Parece mesmo o Paraíso"

Óleo s/ tela, 50 x 70 cm

ano: 2004


"Esta é uma história para ser lida na cama, numa casa velha, em noite de chuva. Os cães dormem e os cavalos de sela - Dombey e Trey - fazem ouvir-se nos estábulos do outro lado da rua suja, por detrás do pomar. A chuva é suave e de uma necessidade sem desespero. Os lençóis de água estão num nível satisfatório, o rio que corre perto está cheio, os jardins e os pomares - estamos num virar de estação - estão convenientemente irrigados. Quase todas as luzes estão apagadas na pequena aldeia perto da cascata onde, antigamente, o moinho costumava produzir riscado de algodão.(...)A vila chamava-se Janice, o nome da primeira mulher do dono do moinho. A norte da vila situava-se o Lago de Beasley - uma massa de água profunda, em forma de cotovelo, com margens densamente arborizadas. Aqui havia água e verdura e um pintor do século dezanove teria posto em primeiro plano uma linda mulher numa mula, ligeiramente debruçada sobre a criança que tinha nos braços e acompanhada por um homem com um bastão. Isto permitiria ao artista chamar ao quadro «Fuga para o Egipto», embora tudo o que ele quisesse celebrar fosse o seu prazer desconcertante numa bela paisagem de um dia de Verão".

In "Parece mesmo o Paraíso" de John Cheever, edit. Relógio d'Água, 1987